O dia em que João de Deus me prometeu uma fazenda na Chapada dos Veadeiros e me mostrou sua verdadeira face. Por Sônia Maia
Por Sônia
Maia,
Este relato
não é sobre abuso sexual, mas creio que posso contribuir para o debate.
Esse grande
iceberg que se esconde sobre um oceano de manipulações e mentiras vindas de
figuras como João de Deus é mais profundo e não para em abusos sexuais, sua
mais perversa manifestação.
Fui para
Abadiânia com um casal e uma amiga em 2016 para depois esticarmos até Alto
Paraíso de Goiás.
Naquela
época, eu seguia o Prem Baba, também acusado, este ano, de abuso sexual, ao
qual dedicarei linhas à parte mais adiante, para não ficar sobrepondo uma
história à outra, embora os padrões centrais se repitam nele, em Gandhi (sim
ele mesmo), Moji e diversos outros nomes menos desconhecidos no Ocidente.
Esses
padrões aparecem nos próprios depoimentos das mulheres: ‘não contar pra
ninguém’, ‘sessões a quatro paredes de cura pela kundalini’, falas de
despotencialização – no caso do Baba, quando a principal abusada decidiu
finalmente sair da bolha, ouviu dele: “você está perdendo sua luz”.
Voltando à
minha ida à Abadiânia, acreditei, sim, que lá haveria uma energia boa da qual
eu pudesse usufruir – fui para dar uma força espiritual de cura para o meu
túnel do carpo. O que mais me encantou no primeiro dia foi aquela roda de
meditação, que acontece na sala de cura, com perto ou mais de cem pessoas.
Ali senti
uma energia muito especial emanando daquelas pessoas, mais do que do próprio
João de Deus. Essa foi a percepção, também, de uma senhora de mais de 90 anos,
entrevistada pela artista servo-croata Marina Abramovic, no documentário
“Espaço Além – Marina Abramovic e o Brasil”.
Pra mim, o
encontro com João de Deus em si, naquela fila que você recebe a prescrição pra
medicação Passiflora, foi como olhar para um homem comum.
Daí, talvez,
tenha vindo a coragem pra encarar o movimento ousado que fiz, cujas consequências
sinceramente não esperava, apesar de ter sido alertada.
A cena que
me levou a buscar uma conversa pessoal com João de Deus foi essa: estava indo
para a “Casa” quando vi um grupo de cadelas e cachorros desesperados,
visivelmente desnutridos, em claro sofrimento por fome, por sede, bem na rua
onde a “Casa” se instalou em Abadiânia.
Mesmo tendo
sido criada em um bairro de periferia de São Paulo, e visto muitos animais
abandonados em péssimas condições, nunca tinha presenciado cena tão
devastadora.
Quando olhei
ao meu redor, havia mais três mulheres com o mesmo olhar estarrecido.
Imediatamente
nos juntamos, conversamos e resolvemos que iríamos falar com João de Deus. Como
um lugar que se propõe a promover a cura através da espiritualidade não
contribuía, de alguma forma, para tirar os animais daquele estado?
As mulheres
passaram a colher depoimentos dos comerciantes e moradores da rua e descobriram
que eles não colocavam comida nem água para os animais por ordem de João de
Deus.
Que os
animais não pudessem entrar na “Casa” era compreensível, mas proibir de dar água
e comida a eles?
A primeira
coisa que fizemos foi falar com uma mulher próxima a João de Deus, que poderia
fazer esta ponte pra gente.
Mas ela foi
taxativa: “Não vão falar com João de Deus, o homem, porque não vai acabar bem.
O João de Deus homem é outro. Falem com a entidade”, nos alertou, bem
claramente.
As mulheres
acabaram desistindo do encontro e resolveram tentar ajudar de outra forma,
apoiando quem já fazia um trabalho humanitário com esses animais, na verdade
muito poucas mesmo. Sempre mulheres.
Mas uma
delas insistiu em encontrar João de Deus e, pra não deixá-la sozinha, resolvi
acompanhá-la. Entrei sem saber, como descobri depois, que João já tinha sido
avisado do assunto que nos levava até ele.
João estava
sentado em um grande sofá, e olhou séria e diretamente nos meus olhos, me
chamando a sentar com um gesto de mão. Então, eu disse: “Primeiramente, quero
agradecer a oportunidade de estar aqui desfrutando desta energia de cura que o
senhor propicia”, comecei.
Falei que eu
mesma tinha um guru, que respeitava gurus etc. E, então, falei da situação dos
animais.
E foi quando
conheci a real face de João de Deus – um homem bruto, sem o menor tato, mal
educado e mesmo virulento, que se acha acima de tudo e de todos, cuja palavra
está acima de tudo e de todos, como mostrou, também, sua atitude no final de
nossa entrevista.
Ele repetia
que estava lá para curar pessoas, que havia rios onde os animais poderiam beber
água, que essa não era uma preocupação dele. Disse ser ele também um guru, me
interrompendo e várias vezes enaltecendo a si mesmo de forma prepotente.
Resolvi
falar: “Senhor João de Deus, as pessoas da rua, os comerciantes, moradores,
dizem que não colocam água e comida para os animais porque o Sr os proíbe, e
tenho certeza isso não é verdade… Então…”.
Neste ponto,
João de Deus se levantou, chamou assistentes de fora, uma delas apresentada por
ele como jornalista, e pediu que todos relatassem os benefícios de seus
trabalhos e o enaltecessem.
Chegamos ao
grande salão inicial, onde as pessoas ficam esperando para entrar em fila na
sala de cura, aquela onde ficam as pessoas em meditação.
Ele subiu ao
palanque, pegou o microfone e eu, por minha vez, fui mandada sentar ali em um
lugar ao lado do palco.
João chamava
uma, chamava outra, mostrava marcas de mordidas de cachorro no braço de uma,
enaltecia seu trabalho, apontava o dedo pra mim como razão daquele discurso,
pedia depoimentos, e, no final, disse estaria doando pra mim uma fazenda que
ele tinha ganhado na Chapada dos Veadeiros para que eu criasse um lugar de
abrigo para os animais e que ele mandaria um caminhão pra lá com os animais de
Abadiânia.
Foi a
experiência de energia negativa mais pesada que já tinha vivido em toda a minha
vida, comparada, agora, apenas com a vitória de Bolsonaro nas urnas.
Mas o que se
pode dizer é que boa parte das pessoas que estão direta ou indiretamente
ligadas à “Casa”, como o comércio, pousadas etc, que tanto se beneficiam dos
turistas que ali chegam, têm pânico de João de Deus.
Daí não
duvidar das ameaças à vida dessas mulheres, como relataram algumas delas. Porque
é isso mesmo: você está no meio de Goiás, em uma cidade pequenina, onde a lei é
a lei do mais forte.
E João de
Deus, ainda segundo relatos, é um homem muito forte na região. Ele se impõe. E
de maneira pesada e tosca.
Em São
Paulo, mandei uma carta com a proposta de um santuário de animais, explicando
que um espaço assim requereria recursos, os quais eu iria buscá-los, entre
outras necessidades, mas que precisaria da certeza de que isso realmente ia
acontecer, pois pretendia envolver uma ONG.
Ao telefone,
um assessor me dizia que esse terreno não “era bem assim fácil”, mas acabou
prometendo levar a questão a João. Nunca mais ouvi nada de nenhum dos dois.
O que ficou
disso tudo na época? Foi como com Prem Baba. Apesar de reconhecer todos os
benefícios que recebi atendendo programas com seu grupo de psicólogos, ouvindo
seus satsangs, indo a um de seus retiros etc. Mas o que mais me incomodava
tanto em Prem Baba como em João de Deus era a total falta de altruísmo em seus
programas.
Pra mim,
guru, médium, curadores em geral de humanismo relativo e interesseiro, não
reverberam a música do amor em meu coração.
Pra mim,
espiritualidade sem caridade, sem altruísmo, é como uma flor de plástico, sem
fragrância. Como na igreja católica,
cujos padres e assistentes já tiveram atitudes preconceituosas com meus primos
excepcionais, como recusar dar-lhes a hóstia.
Sinto
profunda solidariedade por essas mulheres, pois quem fica com um pé de fora,
fincado ao chão, consegue sofrer menos, embora também sofra. Isso tudo é muito
triste!
Muitos que
chegam a essas pessoas não têm, necessariamente, um histórico espiritual
desenvolvido por si só.
Lembro de
ler alguns depoimentos logo após o escândalo do Prem Baba, quando devotos e
seguidores escreveram cartas e cartas decepcionados, e um deles dizia: “O que
vou rezar agora?”, pois todas as orações que sabia tinha aprendido com Prem
Baba e, agora, não faziam mais sentido.
Quem é
buscador, quem tem um despertar para a espiritualidade, abre um canal muito
precioso em seu ser, e que pode ser facilmente manipulado, principalmente por
figuras que se dizem preparadas para te ajudar nesse caminhar.
É difícil
para as pessoas que não estão dentro de um círculo espiritual, qualquer que
seja, compreender essa vulnerabilidade.
Seria como
você passar por abusos com seu psicólogo, mas muito pior. Pois com o psicólogo
você ainda tem uma relação mais pé no chão.
Muitas
pessoas que procuram ajuda espiritual é porque já tentaram de tudo, inclusive
terapia.
E são as
mais vulneráveis que esses abusadores atacam.
No caso
dessas mulheres, ainda têm que enfrentar as consequências na sociedade, que
primeiramente as vêem como estúpidas, ingênuas – “como ela não correu de lá?”
–, colocando-as em xeque, e o abusador, sabendo dessa dinâmica, imediatamente
se coloca no lugar de vítima, como fez claramente Prem Baba, pública e
privadamente, o que torna tudo ainda mais deprimente e mais difícil.
Não é o
caso, como querem muitos críticos ávidos, de eliminar a espiritualidade, que
não é apenas acreditar em Deus ou encontrar um guru para te guiar.
Já foi
científica e psicologicamente provado, por exemplo, que o bem estar, a “cura”
pra diversos males se dá, também, pelo altruísmo.
Nas
comunidades urbanas e rurais do Brasil, lugares muito propícios para essa
prática, há também grandes mestres, como mostram os protagonistas do brilhante
documentário “Visionários da Quebrada”, lançado este ano.
Perceber que
há mestres ali mesmo, no seu bairro, entre aquelas e aqueles que você acaba não
prestando muita atenção, é também uma opção à figuras espirituais que te deixam
com uma pulga atrás da orelha, e que facilmente abraçam a fama.
Fonte: Diário
do Centro do Mundo
Comentários
Postar um comentário