Pela
primeira vez em 300 anos, o maior quilombo remanescente do Brasil conhece cada
centímetro de seu território. Graças a um projeto inédito de
georreferenciamento, os Kalungas puderam mapear a ocupação, os recursos
naturais, as melhores terras para cultivo e as áreas sob ameaça de invasões dos
262 mil hectares da área onde vivem, no norte de Goiás.
Situado
próximo ao Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, o Sítio Histórico e
Patrimônio Cultural Kalunga ocupa um trecho de Cerrado conhecido por sua grande
biodiversidade e sua abundância de recursos naturais — o território Kalunga
possui nada menos que 879 nascentes, cuja maioria desagua no Rio Paranã, um dos
afluentes do Rio Tocantins.
“Agora temos
uma ferramenta importante para a gestão e proteção de nosso território. Ela nos
ajudará a planejar nosso futuro”, diz Jorge Oliveira, presidente da Associação
Quilombola Kalunga (AQK).
Os Kalungas
tiveram suas terras oficialmente reconhecidas como território quilombola em
1996, mas apenas 55,3% da área foram titulados até agora. Isso abre espaço para
que o restante do quilombo seja invadido por garimpeiros em busca de ouro e
pedras semi-preciosas e por grileiros, que vêm limpando ilegalmente a vegetação
nativa para cultivar nas terras Kalunga.
Líderes
comunitários afirmam que os grileiros frequentemente registram um terreno de 5
hectares fora do território e depois usam esta base legal para criar uma
fazenda de 700 hectares, grande parte dela invadindo o quilombo.
Mapear
para conhecer e proteger
Para saber
quais terras poderiam ser utilizadas para agricultura e quais precisariam de
proteção para se defender contra invasões atuais e futuras, os Kalungas
realizaram o registro e a classificação adequada de seus recursos via georreferenciamento
— ou mapeamento digital. A prática consiste no uso de imagens aéreas para
mapear uma grande variedade de características do solo com extrema precisão
utilizando um sistema de coordenadas geográficas.
Extremamente
cara devido ao tamanho do território, a perspectiva de ajuda para o mapeamento
ficou ainda mais desanimadora com a eleição do presidente Jair Bolsonaro, que
vem expressando hostilidade em relação ao povo quilombola desde antes da
eleição para a presidência, argumentando que “nem para procriador ele serve
mais”.
Antes da
eleição de Bolsonaro, os Kalungas receberam um importante subsídio do Fundo
Internacional de Parceria de Ecossistemas Críticos (CEPF), que é apoiado pela
Agência Francesa de Desenvolvimento, a Conservação Internacional, a União
Europeia, o Fundo Mundial para o Meio Ambiente, o governo do Japão e o Banco
Mundial. O CEPF, criado em 2000, tem como objetivo a promoção da conservação de
áreas biológicas de alta prioridade. Em 2018, o projeto de georreferenciamnto
da Associação Quilombola Kalunga (AQK) foi selecionado para o programa,
tornando-se um das 60 propostas do gênero no Cerrado.
A diretora
de subsídios do CEPF, Peggy Poncelet, explica por que a AQK foi selecionada: “É
muito difícil para as comunidades tradicionais obterem o reconhecimento de seus
territórios, deixando-as vulneráveis à apropriação de terras. E porque esta
comunidade está comprometida com a conservação da incrível biodiversidade
encontrada em suas terras, foi importante para o CEPF fornecer-lhes os meios
para seguir fazendo exatamente isso”.
Munidos de
equipamentos e suporte técnico, os Kalungas realizaram um georreferenciamento
detalhado de todo o seu território entre 2019 e 2021. Graças ao mapeamento
digital, agora eles sabem exatamente onde vivem as 1.600 famílias da área, o
que produzem, se têm acesso à eletricidade, o grau de preservação dos recursos
hídricos e do solo da comunidade, que tipo de agricultura é adequada à terra, e
muito mais.
O CEPF
também financia os Kalungas em seus esforços educacionais, construindo uma
consciência ambiental na região, particularmente no que diz respeito às 19
espécies ameaçadas da fauna e da flora que se encontram no território. Entre
elas estão a Griffinia nocturna, planta que floresce à noite, e duas aves: o
jacu-de-barriga-castanha (Penelope ochrogaster) e a águia-cinzenta
(Harpyhaliaetus coronatus).
Onda de
invasões
Os Kalungas
esperam que o projeto de georreferenciamento sirva como uma ferramenta valiosa
para ajudá-los a deter a mais nova onda de invasores.
Oliveira, da
AQK, conta como foi alvo de violência em 2015: “Derrubaram minha casa e depois
a queimaram, junto com meus campos, destruindo os 45 sacos de arroz que já
havíamos colhido”. Oliveira, sua esposa e os oito filhos passaram dois anos
trabalhando para recuperar as colheitas perdidas. Ninguém foi acusado do crime,
e as agressões contra os Kalungas continuam. Em fevereiro, uma casa na
comunidade de Vão de Almas foi demolida com uma motosserra.
Grileiros
também estão destruindo a flora nativa do Cerrado, da qual os Kalungas extraem
frutos como buriti, mangaba, cajuzinho do cerrado, pequi e castanha de baru
como complemento à sua subsistência. “São exatamente estas áreas, ricas em
frutas comestíveis e ervas medicinais, que [os invasores] estão abrindo caminho
para as monoculturas”, diz Oliveira.
Em junho de
2020, grileiros limparam 500 hectares de vegetação nativa para plantar soja
dentro do quilombo. Eles usaram o sistema de correntão, no qual uma corrente é
suspensa entre dois tratores que avançam derrubando tudo o que encontram pelo
caminho. Este modelo é amplamente condenado por seus danos ambientais, mas as
correntes são facilmente encontradas para compra na internet, com vários vídeos
mostrando como são utilizadas.
Os Kalungas
prestaram queixa de roubo de terra às autoridades estaduais, que na época
estavam preocupadas com a possibilidade de um boicote internacional às
commodities brasileiras devido ao aumento de incêndios e desmatamento no
Cerrado e na Amazônia. As autoridades investigaram a grilagem da terra e
impuseram uma multa de 5 milhões de reais aos criminosos, além de agirem contra
a mineração ilegal no quilombo e apreenderem equipamentos dos garimpeiros.
Ainda assim, invasores seguem chegando ao território Kalunga.
Territórios
para a Vida
Os Kalungas
estão resistindo a essas invasões com confiança crescente e com o aumento do
apoio internacional. No início de fevereiro, o Centro de Monitoramento da
Conservação Mundial do Programa da ONU para o Meio Ambiente (UNEP-WCMC)
reconheceu o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga como o primeiro
TICCA (Territórios e Áreas Conservados por Comunidades Indígenas e Locais) no
Brasil.
Este título
só é concedido a territórios tradicionais bem conservados nos quais as
comunidades mantêm uma profunda conexão com o lugar onde habitam, praticam
processos internos efetivos de gestão e governança da terra e possuem um bom
histórico na promoção do bem-estar do povo —criando o que o UNEP-WCMC chama de
“Territórios para a Vida”.
Rafaela
Nicola, coordenadora do Consórcio TICCA e diretora da Wetlands International no
Brasil, descreve o primeiro passo para conquistar o título: “O que é diferente
em nosso processo é que as próprias comunidades, durante as reuniões em que
discutem as ferramentas que utilizam para o empoderamento e para o planejamento
territorial, trabalham a questão de como se tornar um TICCA se encaixaria nas
visões de si mesmas.”
O pedido de
reconhecimento de uma comunidade é então revisado não por burocratas, mas por
líderes de territórios tradicionais já reconhecidos como TICCAs, para avaliarem
se o candidato preenche os requisitos.
Oliveira,
presidente da AQK, acredita que o reconhecimento TICCA também ajudará a
convencer os jovens a permanecerem no quilombo. “Hoje muitos partem para
estudar e não voltam porque querem a segurança do direito à terra e mais
oportunidades para aumentarem suas rendas.”
No momento,
a pequena renda em dinheiro do quilombo é quase que inteiramente proveniente de
um único projeto de turismo sustentável, administrado por apenas uma das
comunidades. Durante o período de férias na estação seca, a comunidade Engenho
II, no município de Cavalcante, recebe turistas em busca das numerosas
cachoeiras da região.
A atividade,
suspensa durante a pandemia da covid-19, proporcionou uma renda a 300 guias de
diferentes comunidades, todos treinados pela AQK, ao mesmo tempo em que
promoveu a venda de artesanato comunitário e produtos do Cerrado.
A conclusão
do projeto de mapeamento digital do território Kalunga preparou o caminho para
o turismo no futuro ao identificar outros 69 atrativos naturais com potencial
para serem promovidos após consulta às comunidades.
Outros
benefícios trazidos pelo georreferenciamento são o maior conhecimento dos solos
da região e sua fertilidade natural, bem como a melhor compreensão da
topografia e da disponibilidade de água, resultando num uso mais eficiente da
terra. A adoção de tecnologia apropriada trará maiores rendimentos agrícolas
sem a degradação dos recursos naturais do território.
Fonte e texto: Mongabay
Comentários
Postar um comentário