O mês de
junho terminou bruto com a morte de Paulo Ramos, e julho entrou ainda mais
carniceiro, pelo menos aqui em Posse, onde eu, como Greta Garbo, estou me
acabando… quem diria?
No primeiro
dia desse mês, logo de manhã, eu ajudei enterrar Ado Hans, muito moço, nem
trinta anos teria, e o corpo foi acompanhado por uma dezena de cavaleiros,
encharcados de uma dúzia de conhaque Paratudo, um vinho ordinário, muito
consumido aqui no interior.
O enterro de
Ado foi o silêncio do inocente.
À tarde,
outro enterro de um homem de 94 anos. Joaquim Barreto, um excelente contador de
casos, um exímio atirador e, por isto,
caçador de muitas estórias.
Com Joaquim
Barreto encerrou-se o mais forte capítulo da história das tropas – e ele foi
tropeiro de Goiás para Januária, em Minas Gerais, e foi boiadeiro também, no
coice de boiadas curraleiras, daqui para a Bahia.
Homiziado em
Posse, recebi a notícia da morte de Paulo Ramos por telefone do médico Laerte
Guedes. Laerte é um médico humanista, intelectual de primeira água e um
excelente caráter. Sua clínica no setor Aeroporto é o muro de amparo aos
pobres, desvalidos e deserdados. A clínica do dr. Laerte é um imenso SUS.
A vida
romanesca de Paulo Ramos, o seu jeito abusado de merecido , sua pose de
milionário deslumbrado, tudo isto exercia um fascínio incontido no dr Laerte
que via em Paulinho o símbolo do otimismo, “se todos fossem iguais a ele, o
mundo seria melhor…”
No telefone,
o dr. Laerte: “Santa Cruz, estou lhe telefonando para lhe dar notícia da morte
de Paulo Ramos”. E foi logo perguntando e deixando patente a sua admiração
sempre explícita: “Qual o legado de Paulo Ramos para a nossa e para as gerações
futuras?..”
E eu me
lembrei: os puxas saco sempre falam no legado de Marconi e no legado de Iris.
Ora, o
legado de Paulo Ramos pode ser muito mais abrangente, mais amplo e mais
universal, porque Paulinho foi original, originalíssimo.
Um homem que
teve a admiração do dr. Laerte não podia ser um homem medíocre, tinha que ter
muitas qualidades e defeitos demais. Dr Laerte tem um senso crítico
apurado, e homem sem pecado e sem defeito é coisa mal resolvida de protestante
raivoso. O homem só é homem porque é o resultado do pacto entre Deus e o diabo.
Paulinho não era um homem comum. Ele era feito de outro barro.
Eu, o dr.
Laerte e milhares de admiradores vamos falar sempre do seu legado, mas os
moralistas de plantão, despeitados, vão desconhecer e subestimar o legado de
Paulo Ramos à nossa e às gerações futuras, o seu imenso legado.
Dr. Laerte,
agora eu vou lhe contar um pouco da vida romanesca de Paulo Ramos. Eu sei que
você sabe muito mais dele, e quero ouvir as aventuras maravilhosas em que esse
nosso Lancelot goiano se envolveu. Com
todos os desaforos e a superioridade com que tratava os homens comuns.
Dr.Laerte, eu sei muito pouco de Paulo Ramos, mas vou lhe contar esse pouco que
sei. O muito você me conta, porque muito você sabe.
Paulinho só
tinha uma paixão, o Vila Nova. O resto ele matava no peito e carimbava a trave.
Era homem de pouca leitura ou quase nenhuma, mas era jornalista, e dirigiu com
maestria diversos jornais.
Ele não era
Maçom, mas editou um jornal da Maçonaria. Não era espírita e dirigiu jornal do
espiritismo. Não era comunista, mas participava de reunião do glorioso
Partidão, e ao final das reuniões, sempre fazendo deboche e provocação:
-“Três
bandeiras vermelhas que não vão pra frente em Goiás: a do Vila Nova, do Divino
Pai Eterno e do Partido Comunista – insultava.
Quando
Bernardo Elis foi sagrado na Academia Brasileira de Letras, e foi homenageado
na Academia Goiana de Letras, Paulinho estava lá, sem ser convidado, pois ele
dispensava esse cinismo pequeno burguês.
Não se sabe
como, mas o certo é que Paulo Ramos apareceu na tribuna daquela vetusta
instituição. Pior: “Estou aqui nesta tribuna que não tem importância nenhuma
para a sociedade. Não deveria sequer existir. E eu pergunto: ‘Se poeta fizer
greve o que acontece? Nada. Se escritor fizer greve também não acontece nada’,
e a plateia se levantou de indignação e protesto, e um mais afoito propôs um
persona non grata a Paulo Ramos.
E na tribuna da Casa, ainda rosnou alto, insultando mais ainda os
imortais: “Eu ficaria ofendido, se esta
confraria de compadres me considerasse persona
grata. Vocês não existem, e ainda tem o nome de imortais. Imortais,
porque são fantasmas. O escritor de livros é um ser tão pretensioso, para não
chamá-lo de idiota, que publica livros em um país, cujo povo não lê sequer bula
de remédio. E mais: e ainda faz coquetel para vender as suas idiotices”.
Nesse
momento, o presidente da sessão desligou o som, e Paulo Ramos continuou falando
sozinho, e ficou roxo de tanto gritar pelo ” sagrado direito de expressão”,
ameaçando levar para “instâncias
superiores o gesto fascista e tirano da presidência,” – e arrematou:
“Quando eu
começava a falar a verdade, somente a verdade, calaram-me a palavra, porque a
verdade dói”
O filósofo
alemão Bertolt Brecht tinha nojo e ódio
aos banqueiros e os via assim: “Reunir-se para fundar um banco é crime muito mais grave do que
reunir-se para assaltá-lo”. Assaltar banco é coisa de ladrão pequeno roubando
ladrão grande.
Ele, que
nunca ouvira falar de Brecht, tinha ojeriza também aos banqueiros, e os
enfrentava a unhas e dentes , e fechou
mais de uma agência do Bradesco, no sentido literal da palavra. Ele fazia
gerente de banco chorar.
Paulo Ramos
morava em uma fazenda no município de Guarani de Goiás, uma das menores cidades
do Brasil, e lá instalou-se uma agência do Bradesco. Ele era o maior cadastro
da agência, com várias escrituras.
O gerente,
um paulistinha com alma de dez por cento, treinado nas artimanhas de Amador Aguiar, era pixote na mãos de Paulo
Ramos.
A fazenda de
Paulinho era um banquete permanente
sob o
comando de Emília, a grande paixão de Paulo Ramos, sua mulher, namorada e
companheira, e que punha gosto gostoso em todo prato em que tocava.
E o
gerentinho do Bradesco não saía da mesa de Paulo Ramos, ele e a família. Era
frango ao molho pardo, carneiro mamão, leitoa
à pururuca.
E tome
cerveja, e tome cachaça de alambique fabricada na própria fazenda. E o papo? O
mais agradável do mundo. E o homem de finanças embriagado e maravilhado com os
contos das Mil e Uma Noites que só aquele anfitrião das Arábias sabia contar.
Não sem razão, o crédito de Paulo Ramos no Bradesco do Guarani não tinha
limites.
Um dia,
chegou um outro representante do Bradesco, vindo da Cidade de Deus, em São
Paulo, com a demissão do gerente na pasta. Era um inspetor do Banco. Convocou
Paulo Ramos, por escrito, a comparecer no outro dia em horário marcado. E no outro dia, antes do horário marcado, as
calçadas da praça do Banco tremiam de gente.
Eis que o
carro de Paulo Ramos surge do outro lado da praça, e ele desce de terno branco,
gravata borboleta, carregando uma pasta de couro. Entrou na agência, o povo se
amontoou na porta, e o inspetor levantou-se de lá para recebê-lo. Antes que o
bancário falasse, Paulo Ramos foi pra cima dele.
-Eu sou Paulo Ramos. O senhor trabalha no
Bradesco?
-Sim, eu sou
inspetor do banco, e vim aqui só para falar com o senhor…
O inspetor nem terminou a frase, e Paulo Ramos
o cortou no pé do cartucho:
-O senhor
então é meu funcionário…
E para
espanto do inspetor e perplexidade dos curiosos, tirou da pasta um maço de
papéis e mostrou: ‘Essas aqui são ações que provam que eu sou acionista do
Bradesco, então o senhor é meu funcionário, e como funcionário, o senhor é quem
me deve explicação. É a primeira vez que eu vejo o empregado convocar o patrão
em hora marcada. O senhor vai responder por falta disciplinar. E passar bem…’
Girou em cima do calcanhar e entrou no carro, batendo a porta , cobrindo o
Bradesco de poeira.
Só se ouviu
o grito rouco do inspetor:
-Fechem as
portas…fechem esta agência!…
-O prestígio de Paulo Ramos no Bradesco de
Guarani de Goiás atravessou a Bahia e foi bater no Piauí, na cidade de
Curimatá, cidade tão pequena quanto a goiana, cujo prato principal ainda era
zabelê, uma ave silvestre dos vastos campos do vale do Bruguéia.
Na época do
fechamento do Bradesco do Guarani, eu passei por lá, e me hospedei em uma
pensão, onde recebi a visita de um cidadão que chorava aos cântaros. Era o
gerente do Bradesco da cidade.
-O senhor é
da terra de Paulo Ramos, por favor, diga a ele que venha pagar o cheque que eu, de boa fé,
liberei cujo valor é mais do que possuo. Estou perdendo o emprego. E mais
choro…
Agora, vamos à morte do advogado.
O advogado
Carlson Paniago foi assassinado barbaramente em Posse, e o seu corpo foi
encontrado todo mutilado, sem dentes e sem outros órgãos. Até hoje, não se sabe
quem o matou.
Paulo Ramos,
que era seu inimigo, e falava demais, dissera que iria matar o advogado. E
falou isto até para o próprio promotor de Justiça, o dr. Jales. As autoridades
então já sabiam que era o autor. Conversando com o dr. Jales, ele me disse que
Paulo Ramos era o autor do homicídio. E eu garanti a ele que não, pois os
assassinos raptaram a vítima em camioneta de luxo e de alto custo, usando
escopeta e outras armas sofisticadas. E Paulo Ramos, nessa época, estava
quebrado e andando a pés.
-Dr. Jales,
mesmo que Paulinho confessar que matou o advogado, não acredite, porque não é
verdade.
O delegado
era o dr. Divino que veio de Águas Lindas de encomenda. Paulo Ramos então foi
intimado a comparecer à Delegacia de Polícia no outro dia, às 8 horas. E lá
estava no horário.
O delegado
viajou para Alvorada, disposto a retornar lá pelas 4 horas da tarde, “para
quebrar a resistência do depoente”. E Paulo Ramos descobriu isto por conversas
de funcionários. Ele entrou na sala do delegado e começou a usar o telefone,
fazendo interurbanos internacionais, para Portugal e até para a África, onde se
falava o português.
Aí, ligaram
para o dr. Divino e falaram das ligações internacionais. Era um telefonema
atrás do outro. O delegado resolveu antecipar a sua volta. E foi logo para o
interrogatório. Depois da qualificação, veio a primeira pergunta:
– Perguntado
ao depoente, o senhor sabe quem matou o dr. Carlson Paniago?
-Sei…
– Diga então
o nome ou os nomes dos assassinos…
-Os
assassinos são três: o padre, o juiz e o delegado…
-O senhor
está mentindo!
-Igual o
senhor que disse que fui eu quem o matou. É mentira também. Aqui é mentira
contra mentira – debochou Paulo Ramos.
Nesse
momento, o delegado Divino deu por encerrado o depoimento de Paulo Ramos e até
hoje não se sabe quem matou o advogado Carlson Paniago.
Quando
passei a palavra para o dr. Laerte, que sabe tudo de Paulo Ramos, uma notícia
urgente e gravíssima nas redes sociais interrompeu o nosso diálogo, e o dr.
Laerte fica nos devendo as histórias, as
mais lancinantes, da vida romanesca deste Lancelot moderno.
No dia de sua morte, o inferno entrou em prontidão máxima,
trancando todos os portões, e a capetaiada foi mobilizada com milhões de
espetos de fogo para se defender da ameaça iminente.
Enquanto
isto, o céu abriu-se todo para recebê-lo. E São Pedro, ingenuamente, até
convocou Catulo da Paixão Cearense para homenagear Paulo, ao som de “O Luar do Sertão”.
Pedro e
Paulo sempre foram parceiros e amigos fraternos. Foi só um reencontro. Era
Pedro pra lá, Paulo pra cá. Logo, logo Paulinho estava dando ordens para o
porteiro do céu.
Mas essa
confraternização durou pouco, pois descobriu-se que Paulo Ramos entrara lá no
céu levando no bolso um celular.
E tome
ligação pra terra e pra outros planetas. Sem qualquer cerimônia, revelava os
mistérios de todos os mistérios.
“Dagora em
diante, o mundo será transparente, e os Edir Macedos e Valdimiros da vida vão
ter que devolver o dinheiro roubado dos incautos, e vão ter de trabalhar ou
morrer de fome”- decretou Paulo Ramos.
Admoestado
por São Pedro sobre o perigo perigosíssimo do celular, Paulo nem ligou e
ainda deu o troco:
– Pedro, por
isto é que Deus não está conseguindo ser ouvido pelo povo, pois você ainda usa o sino como meio de
comunicação. Eu vou ficar no seu lugar. O céu vai se modernizar e o mundo vai
ser outro. Muito melhor, porque Deus vai falar em linha direta com o povo. E o
povo vai ouvir e entender.
Por Carlos Alberto Santa Cruz, jornalista, do Jornal Hora
extra
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