A história
estava ali, contada no livro de Vladimir Netto, mas não bastava colar a
realidade no ecrã e filmá-la. Era preciso ir além de “Lava Jato — Os Bastidores
da Operação Que Abalou o Brasil e o Mundo” (ed. Desassossego, a lançar no
início de abril) e dar um olhar diferente ao trabalho do jornalista brasileiro,
que tinha feito “uma pesquisa bastante extensa sobre a Lava Jato”.
Quando José
Padilha convidou Elena Soarez para o projeto, tudo o que havia era um livro,
mas depois de Padilha ter feito “Narcos” ambos sabiam que isso não chegava para
o que tinham em mãos.
Não foi
fácil construir uma narrativa televisiva e ficcional a partir da realidade e
Elena Soarez gostava de ter tido mais tempo para dar forma a “O Mecanismo”. “Só
não foi mais demorado porque não podia”, conta a cocriadora a reportagem,
considerando que teve “muito pouco tempo” para criar o argumento.
“A
investigação em si, ela é ingrata do ponto de vista narrativo porque ela vai
abrindo, tem um desenho de leque.” A investigação começa “com um pequeno grupo
de goleiros, depois vamos para diretores de estatais e a seguir para
empreiteiros, que já são muitos, até chegar aos políticos, que são quase
todos”. Elena lembra que “essa gente toda não cabe na tela”, pelo que foi
necessário recorrer “a uma série de simplificações e reduções com o objetivo de
construir uma estrutura narrativa”. “O grande desafio foi esse: fazer o
equilíbrio entre realidade e ficção, entre política e entretenimento.”
Apesar do
desafio de pegar numa investigação ainda em curso e trazê-la para a televisão,
Elena Soarez considera que tem “uma certa margem de segurança” no seu trabalho.
“A primeira temporada termina na sétima parte da investigação e só para ter uma
ideia essa semana a investigação completou a sua 49ª fase, então por esse lado
eu estou mais ou menos coberta, o que não impede que uma vez ou outra eu tome
um susto.” O risco vale a pena, considera a argumentista, que vê em “O
Mecanismo” a oportunidade de contar de contar uma história próximo do tempo em
que ela acontece na realidade. “Se eu estivesse contando essa história passado
muito tempo, eu estaria contando essa história do ponto de vista dos vitoriosos
porque essa é a versão que fica na história”, mas não é isso que acontece aqui.
Na série da Netflix, que nasceu de uma proposta de Padilha ao serviço de
streaming, a história é contada “de todos os lados, com todas as vozes”, o que
acaba por dar um fôlego maior à narrativa. “Está tudo em aberto”, reafirma
Elena Soarez.
Ao tratar
“uma história que tomou o país de assalto” e que “rachou a sociedade civil ao
meio”, levando as posições a extremarem-se, Elena apostou tudo na construção de
algo que revele a realidade sem tomar um lado. Aqui não há esquerda e direita —
“Nós nos esforçamos para que ambas odeiem e elas odiarão, porque queremos
justamente nos retirar desse debate ideológico”, frisa —, pelo que a receita de
“O Mecanismo” é mostrar que a corrupção “é uma prática no Brasil desde sempre e
que não é monopólio de nenhum governo, seja ele de direita ou de esquerda”. “É
uma perversa associação entre capital e poder que se retroalimenta, financiando
interesses privados em detrimento de interesses públicos, em detrimento do bem
comum.”
Embora
considere que o Brasil passou “por situações muito traumáticas recentemente”,
Elena Soarez acredita que todo este processo teve também um lado bom. “Eu
acredito que a perda da ilusão é o lado bom; é melhor saber do que não saber”, considera,
e é também essa a sua missão. “Acho que a realidade brasileira tem nos servido
um excesso de histórias, pelo que a dificuldade atualmente é filtrá-las. São
tantas... Nesse momento de crise, mais do que nunca, a gente faz a nossa parte
nessa área do entretenimento, mas a realidade brasileira está cheia de
histórias para contar.”
A aposta num
assunto que é “profundamente brasileiro e local” pode parecer arriscada, quando
o objetivo é alcançar público de todo o mundo, mas a cocriadora de “O Mecanismo”
acredita que o facto de a corrupção ser “um assunto mais ou menos universal”
pode levar a que “as pessoas se conectem com ele”. Por outro lado, também o
lado ficcional chamará outros públicos para a série. “Investimos muito na
ficção das personagens”, garante Soarez a propósito das mais de 100 personagens
diferentes de “O Mecanismo”, que ainda assim se centra num núcleo mais
restrito. Selton Mello é Marco Ruffo, um antigo delegado da Polícia Federativa,
e Carol Abras interpreta Verena Cardoni (a ajudante de Ruffo), ao passo que
Enrique Diaz dá vida ao criminoso Roberto Ibrahim.
A primeira
temporada de “O Mecanismo”, composta por oito episódios, já está disponível em
streaming na Netflix, mas a segunda leva de episódios ainda não foi anunciada.
À pergunta direta do Expresso sobre a existência de novos capítulos seguiu-se
um silêncio, que passados alguns momentos Elena Soarez quebrou. “Vocês têm essa
expressão em Portugal de que quem cala consente? É isso.”
Fonte e
texto: O Expresso
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