Ela não deu
à luz todos eles, mas os ajudou a nascer. Curiosa, desde pequena, Florentina
Pereira dos Santos "queria descobrir por que uma mulher ganhava neném lá
escondida dentro do quarto e ninguém podia ver". E descobriu. Aos 18 anos,
fez o primeiro parto.
Ajudou a
própria mãe. Depois, chegaram muitos outros, mais de 300. A sabedoria dela vem,
principalmente, da intuição, dos conhecimentos passados por gerações e das
plantas do cerrado, que conhece tão bem.
A parteira e raizeira teve 18 filhos gerados
no próprio ventre e ainda auxiliou na criação de outros 28. Não há melhor
pessoa para definir a palavra mãe do que Dona Flor, hoje com 78 anos.
Tanto que a
vida dela será tema de um documentário. A ideia inicial do filme partiu de uma
mulher também com nome de flor: começou com a produtora cultural Floripes dos
Santos. Ela conheceu a raizera enquanto procurava informações sobre ervas, pois
gosta de plantar essas espécies.
Floripes
acredita que Dona Flor representa uma forma diferente de entender a vida.
"A gente vive em um mundo muito racional. Ela representa o instintivo, o
que é mais próximo da natureza, não só vegetal, mas da natureza humana",
opina.
Na pesquisa para a produção do documentário,
ela percebeu que as parteiras costumam ter histórias parecidas: são líderes
comunitárias, dialogam com os prefeitos, adotam muitos filhos. "Elas têm
esse papel de matriarca, de conselheira." O lar de Dona Flor é o povoado
do Moinho, que fica a cerca de 200km de Brasília, no município de Alto Paraíso
(GO).
A parteira
compara o local ao formato de um útero. O terreno é rebaixado, semelhante a um
vale, onde passam quatro rios, como sangue que nutre o órgão feminino. O relevo
acidentado protegeu a região do agronegócio, um refúgio para a flora e fauna do
cerrado. "É um povoado lindo", afirma a produtora.
A proteção do meio ambiente e das tradições se
relacionam. Dona Flor se preocupa com o desinteresse dos mais jovens, ansiosos
pela vida nas cidades. Atualmente, ela não atua mais como parteira, mas dá
várias oficinas para transmitir os conhecimentos, que atraem público de
diferentes áreas.
Exemplos são
as doulas urbanas, profissionais que dão apoio físico e emocional antes,
durante e depois do parto. A equipe do documentário começou a fazer visitas a
Dona Flor em 2011. Como ela começou a apresentar alguns sinais de fragilidade,
os produtores decidiram realizar logo algumas gravações, em 2013.
A parteira tem um problema no coração e teria
que usar um marcapasso, mas prefere não utilizar o aparelho. "Quem marca
meus passos é Deus", justifica Dona Flor, em conversa com Érika Bauer, a
diretora do filme. Apesar da afirmação, ela reconhece os saberes
"convencionais". Se consulta com os médicos, encaminha pacientes e
utiliza a medicina tradicional de forma complementar às formulas feitas
artesanalmente. "Os médicos sabem muito mais, porque eu só tenho
experiência e sabedoria; não tenho curso superior, então faço meus tratamentos
com eles também", afirmou a raizera, em depoimento à pesquisadora Regina
Saraiva.
No entanto, Dona Flor discorda dos médicos
quando considera necessário. Na tese de doutorado de Regina, a parteira conta
que eles erram na previsão de nascimento dos bebês. "Medem a barriga, mas
não sabem em que lua a mulher engravidou." No mesmo estudo, ela descreve a
colheita das ervas, em que tenta buscar nas áreas menos tocadas pelo homem.
"Quando vou colher, passo o dia inteiro fora, porque é longe. Eu não tenho
coragem de tirar uma casca de ipê daqui para tirar remédio. Sabe por que? Tem
poluição." A raizeira também destaca que a "erva plantada não tem o
mesmo vigor das nascidas nas matas". Dona Flor tem uma formação técnica.
Ela fez um
curso de agente de saúde, em que aprendeu medidas de higiene nos partos e
cuidados com a alimentação de parturientes. A preparação foi importante para
aumentar a confiança dela, que lamenta o fato não ter podido estudar e aprender
a ler e escrever.
O pai dela
abandonou a família e, desde a infância, Flor precisou cuidar dos irmãos.
Apesar de não entender as palavras no papel, o conhecimento da parteira é
bastante reconhecido e, durante o curso, os papéis de aluno e professor
chegaram a se inverter em alguns momentos. "Eles achavam que eu tinha
prestígio para alguma coisa. Por eu sentir que não sabia nada, tinha horas que
eu ficava até sem graça do jeito que eles me tratavam", afirmou, em
depoimento, à pesquisadora Iara Attuch, que fez um mestrado sobre o trabalho
dela. Iara alugou um chalé na região e acompanhou a rotina da parteira durante
um mês.
Dona Flor e equipe do documentário: Tradição e gratidão |
Comentários
Postar um comentário