Pelo menos
três propriedades da família Castelli são disputadas no Judiciário com outras
partes que se dizem os verdadeiros proprietários. Além da fazenda na divisa de
São Domingos, no Nordeste de Goiás, com Correntina, na Bahia, que teria sido a
motivação para que o agricultor Nei Castelli ordenasse os assassinatos de dois
advogados, há outra terra em Guarani de Goiás e uma área em Lizarda, interior
do Tocantins. Ambos os casos estão descritos em documentos públicos.
Os advogados
Marcus Aprigio Chaves, de 41 anos, e Frank Alessandro Caravalhaes de Assis, de
47, foram executados no último dia 28, no escritório deles, no Setor, Aeroporto
em Goiânia.
O caso mais
recente envolve a propriedade de Lizarda. Integrantes da família Faustino, do
Rio de Janeiro, entraram com uma ação no Tribunal de Justiça do Tocantins
(TJ-TO) em 2018, questionando o título de uma fazenda dos Castelli no
município, que fica na divisa com o Maranhão. Os Faustino defendem que seriam
os reais proprietários da área, adquirida por meio de um certame do então
Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás (Idago) em 1979, época em que o
Estado do Tocantins ainda não existia.
De acordo
com a defesa dos Faustino, a família descobriu que títulos dela haviam sido
cancelados, quando contrataram um agrimensor para ver a melhor forma de plantio
na área. Em 2010, os títulos dos Faustino foram cancelados em benefício dos
Castelli pelo Instituto de Terras do Estado do Tocantins (Itertins), o que é
questionado pelos primeiros. O caso ainda tramita no TJ-TO.
Já as terras
de Guarani de Goiás são envoltas em questões judiciais desde 1996, quando
Israel Amorim Souza entrou com ação no Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO)
pedindo a restauração das linhas de limites de sua fazenda, com a restituição
dos trechos invadidos e pagamentos de indenizações pelos supostos invasores.
Entre eles, integrantes da família Castelli.
A defesa de
Israel alega que ele adquiriu a fazenda de um terceiro, que por sua vez, teria
adquirido a área do Idago, em 1982. No entanto, ainda segundo alegação da
defesa no processo, com o decorrer dos anos, os limites dessa terra teriam se
tornado imprecisos. Apesar de o processo começar em 1996, o integrante da
família Castelli citado na ação só foi notificado por oficial de Justiça depois
dos anos 2000. O caso tramita na Comarca de Posse.
Outro
lado
A reportagem
não localizou os atuais advogados dos Castelli nos dois casos, mas em suas
defesas no decorrer dos processos, eles pedem as suspensões das ações e negam a
prática de qualquer ato ilícito. No caso de Lizarda (TO), defendem que o prazo
para questionar a perda do título pelos antigos proprietários teria caído. Já
no caso de Guarani (GO), o Castelli citado no processo diz que a terra não faz
divisa com a de Israel Amorim e diz que seria apenas procurador de outros dois
Castelli.
Região
tem problemas antigos
O Nordeste
de Goiás, região onde houve a disputa judicial que teria sido pivô das mortes
dos advogados em Goiânia, tem um histórico de problemas agrários. A reportagem
conversou com pessoas que vivem, viveram ou conhecem a região. Eles relatam um
aumento da judicialização após o valor das terras subir, por conta de melhora
na tecnologia para plantio de soja e lucro com o grão, dificuldades com a
definição das divisas entre os Estados e documentação frágil na descrição dos
limites de cada fazenda.
Professor da
Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG), Adegmar José
Ferreira foi promotor em Posse, que respondia por São Domingos, nos anos 1980,
e viu de perto essa situação. “Com o advento da soja, houve uma explosão
econômica assustadora naquelas terras que até então não valiam nada. As
empresas descobriram que a soja produzia muito bem naquela região (com
tecnologia). Houve uma migração de proprietários e fazendeiros, principalmente
do Sul do País, para aquela região”, explica o professor.
Adegmar
lembra que desde a época como promotor havia casos de conflitos que acabavam se
tornando processos criminais. “A questão lá é muito antiga, de conflitos
agrários, conflitos possessórios muito intensos, muitas mortes. Às vezes um
proprietário queria entrar na propriedade de outro, áreas com duas ou três
escrituras.”
O promotor
Douglas Chegury, que atuou e morou em São Domingos durante cinco anos, conta
que era perceptível a quantidade de casos de disputa por terras. “Uma colheita
que faz em uma fazenda daquelas é coisa milionária. Vamos supor que um grileiro
invade e um proprietário entra na Justiça. A pessoa na terra sabe que não tem
propriedade, mas quanto mais tempo permanecer, mais colheitas vai ganhar com
aquela invasão.”
Chegury
explica que outra característica da região é que a permanência de juízes e
promotores é rotativa, ficando pouco tempo na região, o que poderia colaborar
para a morosidade dos processos. “Se tivesse solução de (casos de) terras mais
rápido, o conflito seria menor.”
O promotor
conta que essa tensão envolvendo posse de terras era perceptível nos dias das
audiências desses processos. “Nas audiências, às vezes, a gente percebia que os
fazendeiros iam com escolta e as partes, os advogados, às vezes iam escoltados,
vinham com segurança.”
Um político
de São Domingos, que pediu para não ser identificado, conta que uma das
características da região é que muitas terras têm a titularidade comprovada por
documentos paroquiais. “É como se fosse uma escritura expedida pela Igreja
Católica”, explica.
Esta falta
de precisão dos limites da terra acaba gerando problema na hora em que o
proprietário da fazenda faz o “GEO”, o cadastro do georreferenciamento da área.
É o que explica o superintendente do Distrito Federal e Entorno do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Igor Soares Lelis.
“As
matrículas que eles (fazendeiros) tinham era ‘ad corpus’, que usa descrição do
perímetro por meios naturais. ‘A fazenda começa no morro tal, até o córrego
tal’. Não é uma descrição do perímetro exato”, descreve o superintendente.
Assim, segundo ele, há muitos casos de sobreposição, em que o proprietário vai
fazer o seu GEO e já tem outro cadastrado em um pedaço da área que ele
considerava fazer parte da sua propriedade.
Um advogado
e uma advogada ouvidos pela reportagem que atuam para clientes com terras na
região e pediram para não ser identificados relatam que havia uma falta de
definição precisa da divisa entre Goiás e Bahia, definida recentemente por julgamento
do Supremo Tribunal Federal. “Dependendo do advogado esticava a divisa para lá
ou para cá, para adequar a sua terra”, relata o advogado.
Castelli
são pioneiros em cidade do Paraná
O agricultor
Nei Castelli, de 58 anos, preso suspeito de mandar matar dois advogados em
Goiânia, é de uma família tradicional da pequena cidade de Mamborê, no Paraná.
Os pais e irmãos possuem fazendas que produzem grãos no Sul e também em
Correntina, na Bahia, onde são proprietários de duas grandes fazendas de soja.
Uma pessoa
próxima à família ouvida pela reportagem, que pediu para não ser identificada,
descreve a família como simples, honesta e muito trabalhadora. Ela diz que Nei
teria se sentido injustiçado com a perda da fazenda na decisão judicial para o
cliente dos advogados.
“Para o
trabalhador honesto, qualquer um se vê perdido, indignado, porque a justiça não
foi feita. Eu não conversei com ele (Nei), não sei se foi ele, mas
sinceramente, eu acho que foi um momento de revolta irracional de qualquer ser
humano pode passar por isso.”
A notícia da
prisão de um Castelli surpreendeu os moradores de Mamborê. Notícias
jornalísticas sobre o assunto circularam nos grupos de WhatsApp de moradores da
cidade de 13 mil habitantes, segundo Vilson Olipa, dono de um site de notícias
de Mamborê. “Nunca ouvi falar qualquer notícia negativa sobre eles, então é
mais chocante quando vem uma notícia destas”, conta. Ele diz que os irmãos de
Nei são mais conhecidos na cidade, já que Nei mora na Bahia.
Os Castelli
são bastante considerados em Mamborê. Em uma defesa da família feita no início
dos anos 2000, em processo em que a propriedade de uma fazenda é questionada, o
defensor descreve que os Castelli “gozam de grande prestígio perante a
comunidade onde residem há mais de 30 anos, possuindo nome e tradição familiar
a zelar.”
Em um jornal
de uma associação de produtores rurais do Paraná, a família é descrita como “um
bom exemplo do sucesso que pode significar a atividade agrícola bem
administrada”. No mesmo texto, é narrado que os Castelli tiveram uma colheita
acima da média, que cultivam 200 alqueires em Mamborê e 2 mil hectares na Bahia
e em Goiás.
Na coluna
social da Folha de Londrina de 4 de outubro de 2018, Nei Castelli aparece ao
lado de empresários agrícolas e parceiros comerciais em uma viagem ao Pantanal
Matogrossense, que incluía pesca esportiva. “A pescaria do grupo foi uma grande
confraternização, com muitas fisgadas de barbados, cacharas e jaús, como este
capturado por Nei Castelli, depois solto, e que pesou 27 quilos”, diz a legenda
da foto em que Nei aparece sorridente segurando o peixe. O empresário Cosme
Tavares, suspeito de ser intermediário das mortes dos advogados, diz que
conhecia Nei de pescarias.
Fonte: O Popular
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