A fome
grita, com frequência, na barriga da quilombola Laídes Pereira da Cruz, de 25
anos, e de três filhos que vivem com ela (ao todo são cinco), na comunidade
kalunga, em Cavalcante, em meio a serras de difícil acesso na região da Chapada
dos Veadeiros, no nordeste de Goiás, parte mais pobre do estado. “Não tenho
dinheiro para comprar mistura.”
O caso da
jovem mãe é o retrato mais grave de 8 mil famílias afrodescendentes que vivem
nos municípios goianos de Teresina, Monte Alegre e Cavalcante sem ter refeição
completa à mesa. A situação de Laídes piorou depois que ela parou de receber o
auxílio emergencial, que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) prometeu
retomar a partir de março.
“Usava o
benefício para comprar comida, carne, arroz, feijão, macarrão, leite, pão, para
meus filhos.” Ela tem uma menina de 10 anos e quatro meninos – de 8, 5, 4 e 2.
Dois deles moram com os pais. “Meu maior desespero é ver o pessoal judiando dos
meus filhos, porque come perto da gente e não oferece”, desabafa.
Com o fim do
auxílio em dezembro e sem dinheiro para complementar os R$ 212 que recebe de
Bolsa Família, Laídes passou a ir – às vezes com as crianças – para a área
urbana da cidade. Fica de favor em uma casa. Aflita, já suplicou por socorro
até na porta da prefeitura.
Faltam
energia e água potável
Em uma
região sem energia elétrica e água potável para todos, o caso dela só
exemplifica o reflexo do fim do auxílio para milhares de quilombolas entre os
68 milhões de pessoas que chegaram a receber o benefício no Brasil.
De acordo
com o Censo preliminar de 2020, o país tem 5.972 comunidades quilombolas. O
levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foi
suspenso por causa da pandemia do coronavírus.
A
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas
(Conaq) estima mais de 6,3 mil quilombos no país, com 16 milhões de quilombolas
– mais do que a população de todo o estado da Bahia ou quase o mesmo do que o
próprio estado de Goiás.
Antes da
pandemia, moradores de territórios de população afrodescendente, em Goiás,
sobreviviam com renda gerada pela economia da agricultura de subsistência,
tradicional entre eles, e do ecoturismo, tendência mais recente, principalmente
em cachoeiras de Cavalcante. Pouquíssimas famílias criam bovinos e suínos.
Pobreza
extrema
Algumas
casas de tijolos de adobe e telhado de palha ainda abrigam parte da comunidade,
aumentando o retrato da pobreza extrema, que deixa mais difícil a vida da
maioria dos 8 mil quilombolas das três cidades goianas. Só em Cavalcante, eles
representam 80% da população – na cidade, houve 78 casos de Covid-19 e 3 mortes
por causa do vírus.
No nordeste
do estado, em que 39 comunidades quilombolas compõem o Sítio Histórico e
Patrimônio Cultural Kalunga, só escaparam da fome severa os que colhem na roça
produtos básicos, como arroz, feijão, mandioca, milho e hortaliças. Nessa
região, carne, leite e outras proteínas são itens de luxo.
Uma das três
comunidades quilombolas kalungas em Cavalcante e a mais povoada de todas, o
Engenho 2 é a única em que parte de seus 700 moradores, principalmente idosos,
tem roça comunitária para frear a fome.
“Mas apenas
40% das pessoas são beneficiadas com ela. Os demais têm pequena horta”, diz o
presidente da Associação Kalunga Comunitária do Engenho 2, Adriano Paulino da
Silva. O lugar fica a 26 quilômetros do centro de Cavalcante, por estrada de
chão.
Na
comunidade em que Adriano Paulino mora, grande parte das pessoas foi
contemplada com o benefício do governo federal. “Cerca de 80% da comunidade
conseguiu receber o auxílio emergencial”, estima o presidente da Associação
Kalunga do Engenho 2. Agora, a compaixão de vizinhos é a única esperança.
Em outro
ponto da cidade, 650 pessoas da comunidade quilombola São Domingos passam mais
sufoco por falta de roça comunitária. A misericórdia vem da mão estendida dos
que ainda têm um pouco.
“Aqui, a
gente passa arrochado”, diz o presidente da Associação Quilombola São Domingos,
Moisés da Costa. “Na hora do aperto, vizinho pega pacote de açúcar em um, café
no outro, arroz em outro. Se não fosse a boa vontade da vizinhança, o trem
estaria mais feio”, acrescenta.
“Situação
feia”
Sem amparo
do governo federal, a comunidade aumenta seu sentimento de desolação. “Estamos
numa situação feia. Muita gente estava até satisfeita com o auxílio, mas,
depois que acabou, o pessoal passou a ter mais necessidade na pandemia”,
ressalta Moisés.
Apesar da
solidariedade, as comunidades enfrentam, ainda, os impactos do período de seca
na região e têm de se organizar para revezar o plantio. “Agora a gente está
esperando a colheita do arroz, daqui a dois meses. Antes disso, planta o
feijão, porque vai dividindo as terras”, destaca o kalunga Adriano.
Única fonte
de renda hoje na cidade, a Prefeitura de Cavalcante não tem mais verba para
socorrer a população quilombola nem com migalhas. Está endividada. “Não está
nada fácil. Toda hora chega gente querendo ajuda, emprego”, diz o prefeito
Vilmar Souza Costa, kalunga que assumiu o seu primeiro mandato em janeiro deste
ano.
Com
título, mas sem socorro
Os
quilombolas ainda não tiveram qualquer tipo de ajuda após a Organização das
Nações Unidas (ONU) reconhecer, este mês, o Sítio Histórico e Patrimônio
Cultural Kalunga no Programa Ambiental das Nações Unidas.
Com título
inédito no país, a expectativa é ampliar a autonomia necessária à gestão do
território, que compreende 261 mil hectares – o que equivale a 365.546 campos
de futebol.
Em meio ao
aperto e sem ajuda de fora, parte das comunidades encontra socorro em comércios
que vendem produtos com pagamento futuro. É assim que, em alguns dias, Laídes
ainda consegue garantir o leite para seus filhos mais novos no centro da
cidade, onde tem implorado por caridade.
“Peço para
me venderem fiado, para não deixar as crianças passarem fome todo dia. Meus
filhos comem o básico. Pago a dívida com o dinheiro do Bolsa Família, mas logo
tudo acaba”, pontua. É a partir daí que a família inicia, de novo, uma
via-crúcis para tentar vencer a fome, cotidianamente.
Fonte e texto: Metrópoles
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