Povoado kalunga em Cavalcante |
No início de
junho deste ano, o desaparecimento por 24 horas de duas crianças, de 4 e 2
anos, da comunidade quilombola Kalunga Vão do Moleque, em Cavalcante (GO),
reacendeu dúvidas sobre a existência ou não de índios isolados da etnia
avá-canoeiro na região. Dias após a entrega dos primos em primeiro grau às suas
famílias, um jovem integrante do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga
fez uma postagem na internet sobre o assunto dando muito o que falar. É
possível que em pleno século 21 ainda existam no Brasil Central indígenas
resistentes ao contato do homem branco?
Alvani
Cesário, de 25, escreveu na página da Comunidade Kalunga do Vão de Almas, no
Facebook, que “já foram vistos motivos (sic) de povo indígena na região por
moradores, como sinais de fogueiras, artesanato de madeira e também flecha”. O
jovem conclui que “nesse contexto, a principal hipótese são os índios”. Alvani disse que decidiu fechar a postagem diante de tantos
comentários, alguns deles mencionando que ele estaria sendo racista ao atribuir
o desaparecimento das crianças aos índios.
Alvani
garante que não foi nada disso, apenas expôs uma questão sempre mencionada
pelos mais velhos. “Escrevi o que ouvi na comunidade, dos vestígios que foram
vistos recentemente. Mas isso não é nenhuma novidade. Minha família tem sangue
de índio porque o bisavô do meu pai era índio. Pessoas idosas contavam que
antigamente havia esse entrosamento entre eles.” Outra pessoa da comunidade
Engenho 2, que vive em Goiânia e prefere o anonimato, lembra de ouvir dos
antigos que “crianças eram raptadas por índios e que crianças indígenas moravam
com os Kalunga, eles se tratavam por ‘cumpade’, mas isso foi muito
antigamente”, conta.
Na sua
postagem, Alvani ressalta que o fato das crianças terem voltado para casa com
os bolsos das bermudas cheios de cocos de guariroba ou gueroba, no jargão
goiano, pode indicar o contato com os índios que usam esses frutos para se
alimentar. Ele faz menção à presença de avá-canoeiros “há muitos anos” em
diversas comunidades, entre elas Vão de Almas, Vão do Moleque, Riachão e Saco Grande,
“onde aconteceram vários sumiços de crianças”, de um lado e de outro. “Algumas
famílias de Kalunga têm descendentes de índio por uma parte.” O jovem garante
que duas dessas pessoas ainda vivem na comunidade, fato não comprovado. “Se é
mentira, são os mais velhos que estão mentindo.”
Presidente
da Associação Quilombola Kalunga (AQK), Jorge Moreira, de 53, vive na
comunidade do Engenho, em Cavalcante, e participou das buscas às crianças.
“Eu ajudei a
procurar os meninos junto com a equipe de resgate e posso dizer que a distância
que eles caminharam, cerca de 12 km, nos deixou boquiabertos. Havia rastro
deles num despenhadeiro o que fez as pessoas se perguntarem como conseguiram
atravessar ali, por isso veio o questionamento se não seriam índios”, afirmou
Jorge, que diz também achar difícil essa possibilidade.
“Não há mais
lugar no território Kalunga sem gente. Com a abertura para o turismo, há
movimento em todo lugar. Mesmo com o grande desmatamento dos últimos tempos, o
que poderia afugentá-los, eu não acredito muito nisso.” O presidente da AQK
lembra bem de histórias contadas há 20 anos por um pequeno agricultor que vivia
na comunidade de Palmeiras. “Ele falava da existência de índios na região, dois
ou três apenas. Dizia que deixavam vestígios e chupavam a cana que ele
plantava. Uma noite ele acordou com uma pancada na perna e tinha certeza que
era índio.”
Noite
fora de casa
Segundo
Jorge Moreira, as crianças saíram da casa dos pais, na comunidade Vão do
Moleque, para visitar o avô, mas se perderam no caminho, uma área de muitas
serras. Com o alarme, não apenas o pessoal do Corpo de Bombeiros como o de
várias comunidades Kalunga se envolveram nas buscas.
Depois de
uma noite fora de casa, os meninos foram encontrados por Brígida, moradora da
Fazenda Chocão, que estranhou pegadas de crianças pela estrada e foi atrás.
Inicialmente, um dos meninos correu dela, mas exaustos da intensa caminhada,
concordaram em segui-la. Somente após serem alimentados, foram entregues ao
Corpo de Bombeiros.
“Uma das
crianças estava com os pés mais machucados, indicando que tinha andado o tempo
todo. A outra, não”, lembra Jorge Moreira. Este foi outro fato que levantou
dúvidas na comunidade. Muito pequenos, os meninos não conseguiram contar o que
viveram no período que ficaram fora do Vão do Moleque, dizendo apenas que
erraram o caminho da casa do avô.
Busca
A postagem
de Alvani Cesário atraiu a atenção de Kamutajá (leia-se Kamutaia) Silva Ãwa, de
25, que pertence ao grupo avá-canoeiro que vive na Ilha do Bananal (TO). Ela
não só acredita que ainda há integrantes isolados do seu povo, como também
pretende fazer uma expedição aos dois locais onde eles provavelmente poderiam
habitar, um deles o município de Cavalcante. Ela reafirma a história contada
pelos membros da comunidade Kalunga. “Anos atrás nosso povo teve um contato
muito próximo com eles. Havia uma troca de pegarem as crianças. Há negros com sangue
indígena”.
Essa relação
foi contada no documentário Taego Ãwa, dos irmãos Henrique e Marcela Borela,
pelo avô de Kamutajá, o líder e pajé Tutawa, que morreu em 2015. Morando em
Palmas (TO) onde cursa Pedagogia na Universidade Federal do Tocantins, a
indígena afirma que esteve em Minaçu, nas terras de um pequeno grupo de
avá-canoeiro, e lá soube que após o desmatamento das fazendas, “começaram a
aparecer vestígios e as pessoas têm relatado muito a existência de mais de
nós”.
Para
Kamutajá, há avá-canoeiro resistindo ao contato com os brancos em Cavalcante e
na Mata do Mamão, na Ilha do Bananal, onde também pretende percorrer. “Devido a
todo o sofrimento, ao processo genocida contra meu povo, eles não querem ser
vistos. Sabemos que perambulam pelo Rio Javaés. Nesta época do ano, quando vem
a seca, saem em busca de comida e já foram vistos por alguns de nós em roças.”
Resistência
Aproximadamente
30 integrantes do povo Ãwa, como originalmente os avá-canoeiros se
autodenominam, vivem na Ilha do Bananal. Kamatujá é do grupo que está na linha
de frente para garantir um território à etnia, a terra Taego-Ãwa, demanda
histórica ainda sem aprovação oficial. “Nós ficamos esquecidos. Não tivemos
direito ao nosso território. O meu trabalho é fazer com que os direitos dos
meus parentes sejam garantidos e não passem o mesmo que nossos antepassados.”
A história
dos avá-canoeiros remonta ao século 18. O grupo indígena vivia às margens do
Rio Tocantins e resistiram à colonização do Brasil Central. Com os massacres sucessivos,
parte migrou para a bacia do Araguaia onde chegou por volta de 1830, disputando
espaço com as etnias karajá e javaé. Passaram a ser caçados por criadores de
gado na ilha, o que os levaram a embrenhar pelas matas da Ilha do Formoso,
entre os rios Javaés e Formoso do Araguaia.
Uma frente
de atração da Fundação Nacional do Índio (Funai), tendo à frente o indigenista
Apoena Meirelles, capturou em 1973 dez desses indígenas, numa ação considerada
violenta corroborando o histórico de agressão ao povo avá-canoeiro. O líder do
grupo era Tutawa, o avô de Kamutajá. Na época, os indígenas ocupavam uma área
elevada, dentro da Mata Azul. De lá foram transferidos pela Funai para a aldeia
Canoanã, dos javaés, na Ilha do Bananal. Atualmente, o grupo está disperso
entre aldeias javáes e karajás.
Os
descendentes de Tutawa, fortes e resilientes, lutam pela afirmação étnica e
pela terra Taego Ãwa, na região da Mata Azul, município de Formoso do Araguaia.
A área de 28 mil hectares foi identificada pela Funai em 2011 e declarada como
de posse permanente pelo Ministério da Justiça em 2016. Entretanto, a terra
está ocupada por fazendas e um assentamento rural. Em 2018 o Ministério Público
Federal ingressou com uma Ação Civil Pública determinando a demarcação da terra,
mas o processo está em andamento.
Em Goiás
Entre
Colinas de Goiás e Minaçu vivem oito integrantes da etnia, o dobro de 1983
quando eles se apresentaram a um trabalhador da região que conheciam à
distância. O grupo original, de quatro pessoas, sobreviveu em grutas, às
margens do Rio Maranhão, afluente do Tocantins, após intensos massacres
ordenados por fazendeiros, o maior deles nos anos 1960, na Mata do Café.
Ainda
resistem as irmãs Matxa, com idade aproximada de 82 anos, e Naqwatcha, de 77, e
a filha da última, Tuia, de 48. Seu marido, Iawi, morreu em 2017. Tuia e Iawi
tiveram os filhos Trumak, de 33, e Niwathima, de 31, o grupo considerado
avá-canoeiro autêntico, por não ter se miscigenado com outras etnias.
Niwathima se
casou com um índio tapirapé, Kaptomy’i, conhecido como Parazinho, e teve três
filhos, Paxe’o, de 8, Wiro’i, de 5 e Kaogo, de 4. Debilitadas, as duas irmãs do
grupo original passam a maior parte do tempo deitadas em redes.
A terra
deles em Goiás, de 38 mil hectares, foi reconhecida como de posse permanente
pelo Ministério da Justiça em 1996, mas a área foi parcialmente inundada pela
represa da Hidrelétrica de Serra da Mesa, o que levou Furnas a pagar royaties à
etnia, dinheiro administrado pela Funai. De forma gradativa, o grupo perde a
sua cultura e a sua terra, frequentemente alvo de invasões. Por iniciativa dos
grupos da Ilha do Bananal e de Goiás, os avá-canoeiros têm tentado uma
interação. O último encontro ocorreu em julho do ano passado, em Minaçu, quando
reafirmaram a vontade de preservar a sua cultura.
Improvável,
mas não impossível
O
indigenista Renato Sanches, de 65, que atua no escritório da Funai, em Goiânia,
não acredita na possibilidade de existência de avá-canoeiros isolados. Ele
esteve à frente da última frente de contato realizada pelo órgão, no início dos
anos 1990, na região de Cavalcante, próximo ao sítio quilombola Kalunga.
“Fiquei dois anos lá, percorri todo o território a pé, de mochila. Comigo
estavam oito mateiros e dois índios, que conheciam trilhas. Não achamos nenhuma
pista. Nunca ninguém viu nada. Só falavam que sabiam”
Renato conta
que o próprio Iawi, um dos avá-canoeiros que se apresentou em Minaçu, esteve
com ele em determinado momento da frente e não encontrou vestígios. O
indigenista detalha que percorreu áreas distantes, próximo a Arraias e Campos
Belos e no interior da Chapada dos Veadeiros. “Eles chegaram a 2.5 mil índios,
mas foram massacrados porque não aceitavam ser escravizados.”
O
antrópologo Christian Teófilo da Silva, professor doutor do Instituto de
Ciências Sociais da Universidade de Brasília (UnB), especialista em etnologia
indígena, acredita que “faz parte do imaginário regional a presença de
avá-canoeiro como ‘explicação’ para muitos vestígios. Mas em se tratando dos
avá-canoeiros, tudo é possível”, afirma. Ele lembra que os últimos da etnia
conhecidos conseguiram sobreviver por dez anos sem serem encontrados, apesar
das várias frentes de contato enviadas pela Funai.
O
pesquisador conta que os avá-canoeiros, hoje em Minaçu, falavam que viviam em
itakwaga, que significa buraco na pedra, ou seja uma morada de refúgio. “Eles
tinham essa habilidade, por isso podemos ser surpreendidos.” Para Christian as
frentes de contato, que deixaram de existir há anos, ficaram próximas ao Rio
Maranhão e às estradas.
Outro
indigenista, Egipson Correia, que conhece bem o universo avá-canoeiro, concorda
com Renato Sanches de que as visitas da Funai em Cavalcante em busca de
remanescentes da etnia não foram frutíferas no passado. “Mas essa região é
ampla e recheada de serras, que podem servir de esconderijo para quem não quer
ser encontrado. Se atualmente houver indícios palpáveis, sugerindo a existência
de índios isolados, uma nova busca da Funai nessa região seria perfeitamente
justificável.”
A Funai não
respondeu aos questionamentos do jornal.
Fonte: O
Popular
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