Chapada dos Veadeiros e Estação Ecológica de Águas Emendadas: Trânsito em unidades de conservação se torna inimigo fatal da natureza
No coração
do Brasil, dois santuários do Cerrado resistem aos avanços da vida urbana.
Moradores de Goiás e do Distrito Federal dividem espaço com animais selvagens
que lutam para sobreviver e manter suas espécies em duas unidades de
conservação — o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás, e a Estação
Ecológica de Águas Emendadas, na capital do país.
Em busca de
alimentos ou incomodados com a limitação de seus territórios, muitos animais
decidem se deslocar até as cidades. E o encontro, em grande parte das vezes,
termina em tragédia. Com estradas planejadas apenas para o uso humano, onde
projetos urbanísticos ignoram a presença da natureza, vias tornam-se sentenças
de mortes para onças, lobos, tamanduás, veados e até pássaros.
Em Águas
Emendadas, fauna e flora estão espalhadas em uma área de 10 mil hectares. Pode
parecer muito, mas é pequena para grandes felinos, que, muitas vezes, caminham
40 quilômetros por dia. Como se já não bastasse a limitação territorial, o
local é constantemente invadido por chacareiros, pescadores e curiosos. Ao
mesmo tempo, quatro vias cortam a região protegida, entre elas, a BR-020, que
tem alta velocidade e é perigosa para animais e humanos. De acordo com dados do
Instituto Brasília Ambiental (Ibram), que atua na proteção, pesquisa e gestão
do meio ambiente no DF, nas redondezas da estação são registradas, em média, 33
ocorrências de atropelamentos de animais por dia. O dado impressiona, ficando
ainda mais cruel quando o recorte envolve toda a unidade da federação.
Para Rodrigo
Augusto Lima Santos, biólogo e analista ambiental do Instituto Brasília
Ambiental (Ibram), a área com maior risco no Distrito Federal é aquela situada
em Águas Emendadas. O especialista monitorou as principais unidades de
conservação do DF ao longo de cinco anos, entre elas a Reserva, o Parque
Nacional de Brasília e o Jardim Botânico. “Só nas Águas Emendadas, a pesquisa
apontou 33 atropelamentos da fauna por dia”, explica o especialista. Rodrigo
destaca que apesar de ter uma malha viária que gira em torno de 350
quilômetros, o Distrito Federal monitora menos da metade. E nestes trechos, que
representam 114 quilômetros de via, são registrados, anualmente, 34 mil
atropelamentos de animais. No entanto, o número pode ser ainda maior, tendo em
vista a extensão das vias.
O Ibram
projeta que 106 mil animais perdem a vida todos os anos nas estradas da capital
do país. O problema é maior próximo das regiões de reserva, por concentrar
maior tráfego de animais, e muitas vezes, também de veículos.
O
pesquisador destaca que atitudes foram tomadas nos últimos anos, mas que a ação
humana tem gerado retrocessos. “Até 2018, conseguimos que algumas medidas
fossem implementadas, como redutores de velocidade em torno do Parque Nacional
de Brasília e Águas Emendadas, por meio de condicionantes de licenciamento
ambiental”, explica. Porém, segundo ele, houve incidentes, como motoristas que
derrubavam radares porque a velocidade era muito reduzida. “Pedimos para trocar
para lombada”, acrescenta.
Urbanização
O avanço das
cidades é um desafio cada vez maior para a natureza. Junto com os grandes
centros urbanos, surgem novas necessidades de transporte, abertura de vias e
sistemas de ligação viários entre estados e municípios. Especialistas apontam
que o maior problema das ações para reduzir o impacto deste crescimento em meio
à natureza é que, muitas vezes, elas são pensadas tardiamente, quando o
ambiente já sofre o impacto das grandes obras, e com as rodovias não é
diferente. A BR-020, construída na década de 1960, cortou o Cerrado no Planalto
Central, passa por importantes reservas ambientais e liga o Distrito Federal
aos estados do Nordeste, terminando em Fortaleza.
Em seu
livro, 50 Anos em 5: Meu Caminho para Brasília (Volume III), o ex-presidente
Juscelino Kubitcheck chegou a lamentar que alguns trechos da rodovia estivessem
sendo engolidos pela natureza. Essa disputa no trecho que passa pela capital
federal não se resume a asfalto e vegetação, mas afeta veículos e animais, o
que preocupa as autoridades que atuam em Águas Emendadas, como explica Gesisleu
Jacinto, administrador de unidades de conservação. “Os atropelamentos são
constantes. A BR-020, por ser de velocidade mais alta, acaba afetando os
animais de vida noturna. Na medida em que eles vão atravessar a pista, o farol
do carro ofusca a percepção deles, e são atropelados. Temos muitos cachorros do
mato, raposa, veado campestre e muitas cobras atropeladas. Como não se pensou na
falta na época que liberaram as rodovias, hoje, a solução, é reduzir a
velocidade, pelo menos no perímetro da reserva. A BR tem dois túneis de
passagem de animais e foram colocadas telas. Não queremos coibir o fluxo de
veículos, mas temos que preservar os animais que vivem naquela região”,
explica.
Obras
O gestor
ambiental Bruno Souza, especialista em Geografia e Análise Ambiental pela
Universidade Estadual de Goiás (UEG), destaca que a malha viária do DF tem
especificidades em relação ao resto do país, e que os encontros entre o fluxo
de veículos e o meio ambiente são constantes. “Brasília tem uma das melhores
infraestruturas em relação a estradas. Grande parte das rodovias está
pavimentada e em bom estado. Isso é algo positivo por um lado e ruim por outro.
Com o asfalto conservado, os motoristas tendem a correr mais e, caso se deparem
com um animal atravessando a pista, fatalmente vai ocorrer o atropelamento”,
diz.
Bruno
ressalta que a solução para atacar esse problema passa por medidas modernas e
estruturantes, que devem ser parte das políticas de governo. “Por conta disso,
as melhores alternativas são túneis ou viadutos, por cima das rodovias. No
entanto, essas obras, principalmente as aéreas, custam muito e os governos
tendem a rejeitar. Mas, algo do tipo faz parte das medidas compensatórias dos
prejuízos ambientais causados pelas grandes obras. A obra do Eixo Norte, em
Brasília, por exemplo, poderia ser uma obra com esse tipo de medida. O DF
sempre tem grandes obras e o Ibram precisa exigir maiores ações para mitigar os
impactos na natureza”, completa.
Anos de
luta para mitigar risco
Santuário
ecológico do Centro-Oeste, a Chapada dos Veadeiros é também palco sangrento de
atropelamentos de animais silvestres nas rodovias do seu entorno. A luta para
que equipamentos capazes de mitigar os riscos é antiga, encampada pela
Associação Amigos das Florestas (AAF). Desde julho, a Associação Protetora dos
Animais do Distrito Federal (ProAnima) assumiu o protagonismo das campanhas de
conscientização. Ações foram ajuizadas para que as administradoras das estradas
adotem as medidas necessárias, mas ainda é incipiente a implementação de
ferramentas para reduzir a morte dos animais. Segundo os ambientalistas, os
atropelamentos são mais responsáveis pela extinção de espécies do que caçadores
e traficantes.
Mesmo com
acidentes gravíssimos, que já provocaram a morte de ativistas ambientais, as
concessionárias relutam em adotar medidas de mitigação, denuncia Flávia Cantal,
vice-presidente da AAF. “Foram colocadas duas lombadas eletrônicas, mas
aguardamos outras 20. Como isso é insuficiente, fazemos campanhas junto aos
condutores, alertando, sobretudo, para que viajem durante o dia, porque 80% dos
acidentes ocorrem no período noturno”, revela. “A falta de visibilidade
atrapalha tanto o motorista quanto a fuga do animal, que costuma se expor mais
à noite”, explica.
Flávia
lembra a morte dramática de uma grande liderança na região, Aleth Mesquita, em
11 de janeiro deste ano, em razão de um capotamento causado por um felino que
atravessou a pista. “Isso, infelizmente, é comum na região”, lamenta. A
especialista diz que existem estudos sobre o número de mortes anuais. “Só no
trecho Alto Paraíso de Goiás-São Jorge, são mais de 2 mil por ano, mas são
dados muito subestimados. Não conseguimos identificar todos os animais que
foram atropelados, as carcaças somem ou outros animais predam”, afirma.
Como as
medidas mais eficientes — criação de corredores ecológicos e passagens de fauna
— são mais caras, Flávia destaca que os administradores de rodovias preferem
adotar a implementação de redutores de velocidade, lombadas, sinalização e
sonorizadores. “A redução de velocidade beneficia algumas classes de animais,
mas nem todos. Mais de 40% das mortes em Veadeiros são pássaros, aves e anfíbios.
O índice de mamíferos é menor, mas gera mais comoção”, assinala.
Ainda assim,
ela conta que cachorros-do-mato e lobos-guará são os animais que mais morrem na
região. “Na semana passada, uma fêmea prenha de lobo-guará foi atropelada na
GO-239. No mesmo dia, morreu uma jaguatirica fêmea na GO-118. Ficamos mais
sensibilizados quando são fêmeas por conta da importância delas para
reprodução”, destaca.
A ativista
lembra que, em 2017, as campanhas conseguiram a implantação de grupos de
sonorizadores na GO-239. “Como a concessionária parou por aí, a gente se deu
conta de que não iam adotar novas medidas. Foram instaurados dois inquéritos no
Ministério Público Federal e chegaram a emitir algumas recomendações para que
as medidas condicionantes no licenciamento ambiental não fossem
desconsideradas”, conta.
Segundo
Flávia Cantal, há uma liminar em fase de cumprimento por uma das
concessionárias. “Como houve a pandemia, a empresa está com dificuldade de
cumprir. Estamos sendo tolerantes por conta da dificuldade neste momento, mas a
decisão é de junho de 2019”, assinala. A ação pede o cumprimento de todas as
mitigações previstas no licenciamento ambiental, passagens aéreas, subterrâneas
e sonorizadores.
A
vice-presidente da AAF aposta que as campanhas vão decolar e ganhar novas
frentes com o apoio da ProAnima. “Pesquisas estão sendo realizadas com pessoas
que foram mortas ou tiveram ferimentos em razão de atropelamentos. Como existe
entendimento unânime de que a culpa de animal na pista é da concessionária,
estamos procurando as famílias para responsabilizar a empresa caso continue a
não adotar as medidas”, diz.
Outro
lado
A propósito
das questões ambientais nas áreas de reservas ambientais, como a Chapada dos
Veadeiros, a Agência Goiana de Infraestrutura e Transportes (Goinfra) informa
que o licenciamento ambiental da rodovia GO-341 encontra-se em curso no órgão
ambiental responsável pela concessão da licença. “Cabe tão somente a este
órgão, por força da legislação ambiental vigente, determinar os estudos
ambientais e condicionantes para a execução da obra pela autarquia”, afirma, em
nota.
“A Goinfra
segue rigidamente as exigências impostas pelos órgãos ambientais no que diz
respeito a licenciamento e zela também pelo cumprimento das condicionantes
previstas nas licenças ambientais previstas para as rodovias estaduais”,
afirma. A agência informa que já apresentou, ao órgão responsável pela licença,
o Projeto Executivo de Passagem de Fauna que prevê solução definitiva para o
problema em questão, e aguarda a deliberação sobre o projeto da passagem de
fauna. “Tão logo receba as exigências do órgão ambiental, a Goinfra adotará as
medidas necessárias para o devido cumprimento das determinações.”
Esclarece,
ainda, que recebeu ofícios do ICMBio e do Ministério Público Federal (MPF),
ocasião em que o departamento responsável providenciou o projeto e o incluiu no
processo de licenciamento em curso a propósito da travessia de fauna na Chapada
dos Veadeiros. “Por fim, a Goinfra informa que está realizando processos
licitatórios para os serviços de monitoramento eletrônico e de conservação das
rodovias estaduais, e que os mesmos serão imprescindíveis para reforçar o
controle e segurança nesses locais.”
Fonte:
Correio Braziliense
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