sábado, 19 de novembro de 2016

Crônica: Nem inferno, nem paraíso



A temporada de chuvas tem resposta na gratidão rápida e exuberante da natureza, nas muitas tonalidades de verde que confirmam renovação da vida. Vales e montanhas recobertos de vegetação plena outra vez após resistir à seca e até ao fogo.

Uma metáfora, sim, de esperança, ciclos, alternâncias. Respirava tranquila essa atmosfera, olhando a paisagem da janela do carro, quando a interromperam, perguntando se tinha recebido um post horrível que circula nas redes sociais.

Não, não tinha visto nem queria, mas antes que pudesse retomar suas divagações otimistas começou o bombardeio.

“Mostram um ladrão que entrou em território dominado por outro grupo numa favela do Nordeste. Ele foi pego pela milícia. Uma barbárie! Gritavam: Pirangueiro! Pirangueiro!” O relato sinistro foi interrompido, apesar da curiosidade mórbida:

“Não quero ouvir, não agora, por favor”. Nesse momento, o pensamento buscava sintonia com outra dimensão, pura e generosa em luzes e cores, distante da miséria que desnuda o pior do humano e ganha reforço ao se multiplicar em milhares, milhões de acessos.

Prosseguiram em silêncio, ambos refletindo sobre o absurdo da violência banalizada que atrai tantas atenções.

Um show de horrores propagado e consumido muitas vezes em tempo real sem que isso provoque indignação, sequer reação, embora alimente uma onda negativa que contamina mentes e corações. Mergulhados nessa corrente destrutiva, seguimos desnorteados, desconfiados e reféns do medo.

Não há como se alienar e virar as costas para uma realidade cruel, porque tudo reverbera e a dor e a maldade alheia nos atingem, não importa quanto anestesiados ou insensíveis estejamos. Tudo conectado em rede, vibrações incessantes, nas quais estamos sempre sintonizados. E, se assim é, como há décadas já esclarece a física quântica, carece cuidado extremo para preservar a saúde e a leveza, mesmo atravessando um lamaçal. Neutralizar, ao invés de potencializar, o bizarro, o desumano, o assustador que nos habita e rodeia.

Ao mesmo tempo, retomar a utopia: não o dedo em riste, o corpo tenso pronto para defesa ou ataque, mas mãos estendidas, mãos dadas, restaurando a harmonia perdida ou prestes a nos escapar. Até por que, qual a perspectiva de acreditar e apostar que não tem jeito, é ruim demais e tende a se agravar?

Parou por aí, foi procurar distração na TV, buscou no mestre Kurosawa alguma ideia para sustentar pensamentos imperfeitos e ficou pasma com a sincronicidade. O filme, Rashomon, de 1950. As imagens, uma arte, obra-prima cada cena, o roteiro perturbador, com diálogos que repercutiam suas indagações do momento. Registrou algumas frases ditas por diferentes personagens desse longa magistral:

“A vida realmente é delicada e passageira, como o orvalho da manhã.”

“Quanto mais eu ouço, mais fico confuso. Mas as mulheres usam lágrimas para enganar todo mundo. Elas enganam até elas mesmas.”

“Ouvi dizer que o demônio vive aqui em Rashomon, fugindo com medo da ferocidade dos homens.”

“Se os homens não puderem confiar nos outros, esta terra poderia perfeitamente ser o inferno.”

“Certo. O mundo é uma espécie de inferno.”

“Não se preocupe com isso. Os homens não fazem sentido.”

Nenhum alento, nenhuma saída fácil. Mas existem crianças, a mata revigorada, o frescor da tarde brilhante depois do temporal, a lua cheia esplendorosa que faz sonhar e emergir a poesia que também é parte de nós.

Texto: Karla Jaime

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