A temporada
de chuvas tem resposta na gratidão rápida e exuberante da natureza, nas muitas
tonalidades de verde que confirmam renovação da vida. Vales e montanhas
recobertos de vegetação plena outra vez após resistir à seca e até ao fogo.
Uma
metáfora, sim, de esperança, ciclos, alternâncias. Respirava tranquila essa
atmosfera, olhando a paisagem da janela do carro, quando a interromperam,
perguntando se tinha recebido um post horrível que circula nas redes sociais.
Não, não
tinha visto nem queria, mas antes que pudesse retomar suas divagações otimistas
começou o bombardeio.
“Mostram um
ladrão que entrou em território dominado por outro grupo numa favela do
Nordeste. Ele foi pego pela milícia. Uma barbárie! Gritavam: Pirangueiro!
Pirangueiro!” O relato sinistro foi interrompido, apesar da curiosidade
mórbida:
“Não quero
ouvir, não agora, por favor”. Nesse momento, o pensamento buscava sintonia com
outra dimensão, pura e generosa em luzes e cores, distante da miséria que
desnuda o pior do humano e ganha reforço ao se multiplicar em milhares, milhões
de acessos.
Prosseguiram
em silêncio, ambos refletindo sobre o absurdo da violência banalizada que atrai
tantas atenções.
Um show de
horrores propagado e consumido muitas vezes em tempo real sem que isso provoque
indignação, sequer reação, embora alimente uma onda negativa que contamina
mentes e corações. Mergulhados nessa corrente destrutiva, seguimos
desnorteados, desconfiados e reféns do medo.
Não há como
se alienar e virar as costas para uma realidade cruel, porque tudo reverbera e
a dor e a maldade alheia nos atingem, não importa quanto anestesiados ou
insensíveis estejamos. Tudo conectado em rede, vibrações incessantes, nas quais
estamos sempre sintonizados. E, se assim é, como há décadas já esclarece a
física quântica, carece cuidado extremo para preservar a saúde e a leveza,
mesmo atravessando um lamaçal. Neutralizar, ao invés de potencializar, o
bizarro, o desumano, o assustador que nos habita e rodeia.
Ao mesmo
tempo, retomar a utopia: não o dedo em riste, o corpo tenso pronto para defesa
ou ataque, mas mãos estendidas, mãos dadas, restaurando a harmonia perdida ou
prestes a nos escapar. Até por que, qual a perspectiva de acreditar e apostar
que não tem jeito, é ruim demais e tende a se agravar?
Parou por
aí, foi procurar distração na TV, buscou no mestre Kurosawa alguma ideia para
sustentar pensamentos imperfeitos e ficou pasma com a sincronicidade. O filme,
Rashomon, de 1950. As imagens, uma arte, obra-prima cada cena, o roteiro
perturbador, com diálogos que repercutiam suas indagações do momento. Registrou
algumas frases ditas por diferentes personagens desse longa magistral:
“A vida
realmente é delicada e passageira, como o orvalho da manhã.”
“Quanto mais
eu ouço, mais fico confuso. Mas as mulheres usam lágrimas para enganar todo
mundo. Elas enganam até elas mesmas.”
“Ouvi dizer
que o demônio vive aqui em Rashomon, fugindo com medo da ferocidade dos
homens.”
“Se os
homens não puderem confiar nos outros, esta terra poderia perfeitamente ser o
inferno.”
“Certo. O
mundo é uma espécie de inferno.”
“Não se
preocupe com isso. Os homens não fazem sentido.”
Nenhum
alento, nenhuma saída fácil. Mas existem crianças, a mata revigorada, o frescor
da tarde brilhante depois do temporal, a lua cheia esplendorosa que faz sonhar
e emergir a poesia que também é parte de nós.
Texto: Karla
Jaime
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